O texto que reproduzo abaixo é rico para nos
fazer refletir sobre a medicalização da educação, uma prática atualmente
crescente na sociedade. Traduz bem como crianças e adolescentes, com ou sem
deficiência, podem sofrer por causa do excessivo costume de procurar
diagnóstico e explicações médicas para problemas não médicos, mas de causas
comuns, coletivas, sociais e políticas, que lhes causam alguma dificuldade de
adaptação ou de aprendizagem.
A medicalização vem ocorrendo em escala
crescente em várias instâncias da vida, mas é especialmente na área educacional
e do comportamento onde encontramos maior incidência. Desatenção em sala de
aula, dificuldade de concentração e de obedecer, inquietude e impulsividade,
dificuldades de aprendizagem com números ou com a leitura e escrita, ou apenas
notas baixas, facilmente são explicadas e diagnosticadas como algum
“transtorno” de aprendizagem ou de comportamento, necessitando de tratamento
médico, e naturalmente, de medicação.
Muitas vezes, o transtorno de comportamento é
tão somente a indisciplina de crianças que têm pais que não as ensinam, que
atendem à todas as suas vontades, e que desconhecem limites. Ou mesmo pelas dificuldades
do sistema escolar. E é claro que questões como estas vão refletir no
desempenho escolar, e nas expectativas e metas que pais e escolas não veem
alcançadas no período estipulado.
Outro costume que encontramos nos ambientes
escolares é o de diagnosticar a criança com dificuldade de adaptação com sendo
portadora de algum distúrbio psicológico. Quando a criança chega à escola, traz
consigo a história de seus primeiros anos de vida, sob todos os aspectos,
incluindo sua singularidade, seu próprio temperamento e personalidade, e pode
encontrar sim, alguma dificuldade de ajustamento, sem que signifique possuir algum
transtorno.
A sociedade estabeleceu conceitos do que é
normal ou anormal e quando encontra uma, ou mais, variantes, estas são isoladas
do seu contexto, dos determinantes sociais, políticos, históricos e
relacionais, passando a ser compreendidos apenas como doença, que deve ser
tratada. Dessa forma, a vida é melhor resolvida com especilistas e remédios.
Não importa qual a dificuldade que ela enfrente,
esse costume rotula, estigmatiza e torna a criança marginalizada no ambiente
escolar, excluindo-a. A criança que demora para aprender, ou a que não consegue
prestar atenção, ou aquela que não se adapta e não faz amigos, nem sempre é
portadora de distúrbios neurológicos ou psicológicos. É claro que determinados
conflitos psiquicos podem afetar negativamente o aprendizado e o comportamento,
assim como pode realmente existir um disturbio neurológico, ou outro problema
médico, mas acima de tudo é preciso um novo olhar: mudar o modo de agir, fazer
ajustes na rotina, nos horários e outros cuidados básicos, mas diferenciados, e
assim proporcionar à criança possibilidades de crescimento, para que por si
própria encontre recursos internos para enfrentar e vencer os desafios, seus
medos e dificuldades.
DISBICICLÉTICOS
Por Emilio
Ruiz Rodriguez*
Dani é uma
criança que não sabe andar de bicicleta. Todas as outras crianças do seu bairro
já andam de bicicleta; os da sua escola já andam de bicicleta; os da sua idade
já andam de bicicleta. Foi chamado um psicólogo para que estude seu caso. Fez
uma investigação, realizou alguns testes (coordenação motora, força, equilíbrio
e muitos outros; falou com seus pais, com seus professores, com seus vizinhos e
com seus colegas de classe) e chegou a uma conclusão: esta criança tem um
problema, tem dificuldades para andar de bicicleta. Dani é disbiciclético.
Agora
podemos ficar tranquilos, pois já temos um diagnóstico. Agora temos a
explicação: o garoto não anda de bicicleta porque é disbiciclético e é
disbiciclético porque não anda de bicicleta. Um círculo vicioso tranquilizador.
Pesquisando no dicionário, diríamos que estamos diante de uma tautologia, uma
definição circular. “Por qué la adormidera duerme? La adormidera duerme porque
tiene poder dormitivo”. Pouco importa, porque o diagnóstico, a classificação,
exime de responsabilidade aqueles que rodeiam Dani. Todo o peso passa para as
costas da criança. Pouco podemos fazer. O garoto é disbiciclético! O problema é
dele. A culpa é dele. Nasceu assim. O que podemos fazer?
Pouco
importa se na casa de Dani seus pais não tivessem tempo para compartilhar com
ele, ensinando-o a andar de bicicleta. Porque para aprender a andar de
bicicleta é necessário tempo e auxílio de outras pessoas.
Pouco
importa que não tenham colocado rodinhas auxiliares ao começar a andar de
bicicleta. Porque é preciso ajuda e adaptações quando se está começando. Pouco
importa que não haja, nas redondezas de sua casa, clubes esportivos com
ciclistas com quem ele pudesse se relacionar, ou amigos ciclistas no bairro que
o motivassem. Porque, para aprender a andar de bicicleta não pode faltar
motivação e vontade de aprender. E pessoas que incentivem!
Pouco
importa, enfim, que o garoto não tivesse bicicleta porque seus pais não puderam
comprá-la. Porque para aprender a andar de bicicleta é preciso uma bicicleta.
(Felizmente, os pais de Dani, prevendo a possibilidade de seu filho ser
disbiciclético, preferiram não comprar uma bicicleta até consultar um
psicólogo.)
Transportando
este exemplo para o campo da síndrome de Down, o processo é semelhante. Desde
quando a criança é muito pequena, apenas um recém-nascido, é feito um
diagnóstico – trissomia do cromossomo 21 – por um médico especialista, e
verificado, com uma prova científica, o cariótipo. A partir disso, entramos em
um círculo vicioso no qual os problemas justificam o diagnóstico, o qual, por
sua vez, é justificado pelos problemas. Por que a criança não cumprimenta, não
diz bom-dia quando chega, nem adeus quando vai embora? “É que ela tem síndrome
de Down”. Ah, bom! Achei que era mal-educada.
Por que a
criança não se veste sozinha, e sua mãe a veste e despe todos os dias, se já
tem oito anos? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não lhe
tinham ensinado.
Por que
continua a tomar mamadeiras se já tem seis anos? “É que ela tem síndrome de
Down”. Ah, bom! Imaginei que era comodismo de seus pais.
Por que a
criança não sabe ler? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não
lhe haviam ensinado.
Por que não
anda de ônibus ? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não lhe
permitiam fazer isso.
E, assim,
uma lista interminável de supostas dificuldades que, por estarem justificadas
pela síndrome de Down, não necessitam de nenhuma intervenção, além da
resignação. Todas as suas dificuldades se devem à síndrome de Down.
Podemos
estender a qualquer outra deficiência em que o diagnóstico médico ou
psicológico possa ser utilizado como desculpa para nos eximirmos de
responsabilidades. Se classificamos a criança como disfásica, disléxica,
discalcúlica, disgráfica, deficiente visual ou auditiva, mental ou motora,
disártrica ou simplesmente disbiciclética, estamos fazendo algo mais do que
“colocar um nome” no que pode acontecer com uma criança. Estamos criando
expectativas naqueles que a cercam.
Por isso, eu
sugiro que antes de comprar uma bicicleta para seu filho ou sua filha, comprove
que não sejam disbicicléticos. Não vá que aconteça imediatamente após a compra
dar-se conta de que se jogou dinheiro fora.
* Psicólogo
da Fundação Down Cantabria, Espanha
Fonte: zerohora.com
Publicado origanalmente em espanhol
Publicado origanalmente em espanhol
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Eliana Bess d’Alcantara – CRP 05/33535
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